Representação fiscal para fins penais: A nova rainha das provas?

André Boiani e Azevedo e Eric Ribeiro Piccelli

Há tempos os militantes em ações penais relativas a crimes contra a ordem tributária percebem a tendência do órgão acusador a fundamentar sua pretensão condenatória exclusivamente no procedimento administrativo-fiscal que teve curso em desfavor da empresa de propriedade do acusado, ou da qual este era administrador. Isso se percebe pelo cuidado que normalmente tem a acusação em narrar como se deu a respectiva fiscalização, praticamente reproduzindo os termos da representação fiscal para fins penais que usualmente instrui a inicial acusatória.

O que parece preocupante, porém, é que nesse campo o Judiciário passou a sistematicamente admitir como prova suficiente à condenação criminal a mera “ratificação” em Juízo dos termos do procedimento administrativo-fiscal que serviu de base à denúncia, sem dedicar atenção às inúmeras e fundamentais diferenças existentes entre os princípios regentes dos processos criminais e administrativo-tributários, as quais impedem essa admissão.

Não se discute que a Constituição da República (CR) consagra, no inciso LVII de seu artigo 5º, o princípio segundo o qual ninguém pode ser considerado culpado sem que contra si milite sentença penal condenatória com trânsito em julgado. Trata-se de garantia fundamental cujo alcance é de especial magnitude, e que molda o sistema penal não apenas em seu aspecto material, mas também em sua faceta processual. É em razão dela que vigora, em processo penal, o axioma de que o ônus da prova da existência de um delito – e aqui se fala em autoria e materialidade – é todo da acusação(1). Por conta dela, diferentemente do que se dá na esfera civil, na seara penal o onus probandinão perde relevo nem mesmo ante a ausência de aceitável contestação do denunciado – tanto que lhe é facultado silenciar ou, até mesmo, mentir, exatamente porque a acusação dispõe de todo o aparato estatal para fazer valer suas alegações, enquanto o denunciado se vê em posição de evidente hipossuficiência nesse aspecto.

Assim, nesse particular, a Carta de Outubro delineia um mecanismo garantidor que só pode ser desconstituído por prova peremptória de que o script acusatório procede. Nisso é seguida pelo CPP, cuja conformação atual proíbe o Magistrado de exarar sentença condenatória lastreada unicamente em material colhido antes de iniciado o processo-crime a ser sentenciado, o que está claramente previsto no caput de seu artigo 155, de sorte que, ainda que um acusado não consiga comprovar que é inocente, assim será considerado se a acusação não lograr êxito em demonstrar, cabalmente, o contrário. Nos domínios do processo criminal, essa é uma verdade absoluta: nele não há espaço algum para presunções de culpa, só para a certeza; do contrário se esvaziaria, por completo, a aludida garantia constitucional.

O procedimento administrativo de cunho tributário, por outro lado, é regido por legislação e princípios próprios, muitas vezes diversos dos acima comentados, pelo que nele se permite até mesmo que o particular sofra condenação em virtude de presunções que lhe desfavoreçam, as quais, justamente por isso, são inaplicáveis a priori ao ambiente processual penal.

É corriqueiro, em sede administrativo-tributária, que, na ausência de “explicação detalhada”, a critério da autoridade administrativa, quanto à circulação de dinheiro na conta-corrente de um particular objeto de fiscalização, a Receita Federal (RF) simplesmente presuma que estaria evidenciada a prática de ilícitos geradores de créditos em favor da União. Ou seja, diante da dúvida, resolve-se a questão, por presunção, em favor do Estado e em detrimento do particular, mesmo porque, como já reconheceu o Egrégio Tribunal Federal da 2ª Região, o fisco tem interesse próprio envolvido nessa fiscalização, podendo ser, e o é muitas vezes, parcial nas suas análises e averiguações(2).

Essa espécie de construção, todavia, não pode ser acriticamente transportada para o Juízo Criminal.

Parece claro que as presunções da Administração que importem na lavratura de auto de infração contra um dado contribuinte não podem se prestar a justificar, por si mesmas, sua condenação criminal, sob pena de subversão do princípio da não-culpabilidade e de violação ao correspondente regramento processual penal. Afinal, se a condenação administrativa vem fundada em presunções formuladas em prol do fisco e em detrimento do contribuinte, não perde tal específico caráter simplesmente por ter sido trazida à apreciação do Judiciário. Um procedimento fiscal não passa a ser regido pelas mesmas diretrizes que regulam o processo penal apenas por instruir uma denúncia, e não se transmuda automaticamente, nessa hipótese, em prova plenamente aceita sob a égide do citado princípio e regramento, sob pena de violação aos artigos 5º, LVII, da CR, e 155 do CPP.

Percebe-se, então, o quão frágil costuma ser o sustentáculo da tese acusatória quando se está a tratar de delitos contra a ordem tributária: usualmente não vem amparada por prova cabal quanto à sua veracidade, mas apenas por uma representação à qual se tenta equivocadamente emprestar esse valor. Lamentavelmente, o que se verifica nesses casos é a negação de todo o sistema penal de garantias acima exposto, mediante a prolatação, com frequência assustadora, de sentenças condenatórias que encontram fundamento não em provas regularmente produzidas na ação penal, mas sim, em presunções administrativas.

Tem-se concedido à representação fiscal para fins penais o cunho de rainha das provas que uma vez pertenceu à confissão, e que dela foi retirado porque um elemento probatório desse jaez simplesmente não pode existir se o que se pretende colocar em prática é um processo penal democrático.

Não se pode olvidar, ainda, que créditos tributários originados de autos de infração costumam sofrer acréscimos consideráveis, tais como multa que pode chegar a cento e cinquenta por cento do valor do principal da dívida que o Fisco afirma existir - e isso, inegavelmente, pode levá-lo a, por meio de seus agentes, presumir certos fatos que lhe beneficiem, no afã de incrementar sua arre­cadação. Não é raro constatar-se, ao longo da instrução de um processo criminal, que as únicas “provas” produzidas pelo Parquet são depoimentos dos agentes fiscais responsáveis pela condução do procedimento admi­nistrativo indicado na denúncia, os quais evidentemente nada fazem além de tentar repetir o que dele fizeram constar - até mesmo para justificar as ações que praticaram. Evidentemente, não é o bastante para amparar uma condenação.

Enfim, pensam os autores que é absolutamente inviável conceder-se a uma representação fiscal para fins penais fundada em presunções um status jurídico superior ao de indício da prática de crime, indício esse que pende de confirmação por meio de prova cuja produção em Juízo é ônus exclusivo do dominus litis.E que essa prova, em processo penal que se pretende democrático, não pode ficar limitada à mera ratificação, por parte dos agentes fiscais.

NOTAS

(1) “Afirmar que ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória implica e deve implicar a transferência de todo o ônus probatório ao órgão da acusação. A este caberá provar a existência de um crime, bem como a sua autoria (OLIVEIRA, Eugenio PacelliCurso de Processo Penal. 5ª ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2005, p.282.

(2) Apelação Criminal 98.02.19601-0/RJ, rel. Juiz CARREIRA ALVIM, 1ª T. julgado em 21.03.2000, DJ 06.09.2001- destacou-se.

André Boiani e Azevedo
Mestre em Direito Penal pela PUC/SP.
Professor de Direito Penal e Processual Penal na UNIP.
Advogado criminalista

Eric Ribeiro Piccelli
Especialista em Direito Penal pela Universidade Nove de Julho.
Advogado criminalista

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